quarta-feira, 15 de julho de 2009

Fins-de-semana em Trás-os-Montes nos anos 80

Nos anos oitenta, também no Verão íamos uns fins-de-semana alargados a Trás-os-Montes, àquela terra em forma de cascata que descia até às margens do Tua, Sobreira de seu nome. Sentava-me na enorme varanda da casa, virada a Sul, encostada às abóboras e com as cebolas, alhos e pimentos entrançados a adornar as paredes. Brincava com os cães de caça do meu avô e com as panelas pretas de três pernas da lareira da minha avó. Ela levava-me às hortas e contava-me histórias do antigamente. Sempre houve uma grande cumplicidade entre nós, embora nos encontrássemos poucas vezes ao longo da vida.
No rio Tua arriscava-me a tomar banho, embora com medo das cobras de água, mesmo ali junto ao açude, com vista para as vinhas de uvas moscatel de um lado e do outro do rio. De onde a onde, passava a automotora na outra margem a apitar. Depois do banho, cem metros acima da água, na vinha do Canal comia um cacho reluzente de uvas doces aromatizadas com bagos que mais pareciam cerejas. Tinha quase sempre a companhia da minha avó e da minha mãe. Ocasionalmente, juntavam-se as primas e primos que tinham ficado em partilhas com a casa grande. A tal que tinha uma argola onde, em tempos idos, os fugitivos se podiam agarrar, garantindo-lhes imunidade, até o dono da casa se pronunciar.
Era tudo gente mais velha do que eu, mas eu sorvia cada momento. E estavamos verdadeiramente em família. A alegria era uma constante. Pelo menos, para mim. Apenas a tristeza oculta nos olhos da minha avó se adivinhava. Um filho morto nunca se esquece.
O meu pai ia à caça com o meu avô. Tenho a imagem deles a subir a escadaria da casa com a espingarda no ombro e os cães atrás. Alguns coelhos e perdizes pendurados nos coletes.
Com o meu avô aprendi a andar a cavalo. Nunca tive o jeito para a equitação da minha mãe. Mas lá arriscava. E o meu avô levava-me no cavalo dele em passo lento, para eu não ter medo, depois arriscava o galope por vales e serras, enquanto me dizia: - não tenhas medo que não cais. Confia em mim. Confiar era a única hipótese...
À noite, havia bogas do rio, pescadas ilegalmente com explosivos pelo Manel, o criado. -Ó Manel, isso é crime, dizia-lhe o meu pai. Ele sorria: - só se não repartir com a autoridade Xô Tor.
Ir à Capela era um acto solene e tinha qualquer coisa de sobrenatural. A minha avó tirava a chave de um recanto numa parede de xisto, passávamos a sepultura dos antepassados no adro da Capela e ela metia a chave na fechadura da porta. Tudo rangia quando a Capela silenciosa e fresca na semi-obscuridade se abria. Nunca me deixavam entrar logo. Tinham que sair os espíritos primeiro, dizia-me a minha mãe. Depois entrava e rezava, mas rezava com aquele temor reverencial de quem confia ao mesmo tempo que o medo se entranha, afinal, ali havia espíritos.... A Capela da Sobreira era linda. No altar da direita tinha uma Santa com a cara igual à da minha avó. Até hoje, para mim, é Santa Joaquina. Provavelmente ainda lá está. O adro da Capela era um espaço de libertação do constrangimento sentido lá dentro. Corria, corria...as sepulturas não me metiam medo, a paisagem era infindável, desde o início da cascata da aldeia lá no alto, até ao Tua ao fundo, mais as aldeias vizinhas, Porrais, Abreiro, Milhais, Codeçais, ficava arrebatada depois da correria. Permanecia ali muito tempo a respirar fundo.
Outro momento marcante era a visita à casa da prima Mariana, que nunca saia de casa, nem abria as janelas. Era branca já de si, mas o pó de arroz com que se maquilhava tornava-a mais sepulcral. Oferecia-nos um chá. Tocava um pouco de piano. Conversas triviais. Nunca me explicaram porque nunca saia de casa. Hoje adivinho que sofria de distúrbio de pânico. Mas nessa altura a prima era assim porque era assim. O marido, por contraste, era um homem robusto, crestado pelo sol e pelo frio, amante de uma mulher do povo igualmente crestada pela natureza, que vivia umas casas abaixo e que com ele traia o marido.
Todos os caminhos eram de pó, essa era outra das grandes atracções, levantar a poeirada à passagem. Os meus avós tinham terras espalhadas por tudo o que era sítio. Quando o centeio estava verde, metia-me no meio do dos campos e cortava as canas. Depois fazia música com elas, dependendo do tamanho a da largura, mudava a melodia...
Divertia-me à grande, sempre sozinha ou com adultos, a minha imaginação não me deixava espaço para a solidão.
À noite, sentava-me na enorme varanda virada a sul, de novo encostada às abóboras e sentia as noites de Verão em todo o seu esplendor. As aldeias vizinhas de Porrais, Abreiro, Milhais e Codeçais, transformavam-se em pequenos aglomerados de luz. De onde a onde, uma estrela cadente... A paz era total. Não precisava de mais nada para sentir a perfeição.
Provavelmente só voltarei à aldeia no dia em que a minha mãe morrer, ou depois da minha morte. Já em pó. Quero que me atirem pelo monte que desce do adro da Capela da Sobreira. Será o reencontro com os anos oitenta e com todos eles, que tanto amo na memória dos tempos idos.

9 comentários:

privada disse...

Compreendo agora pk estavamos destinados a encontramo nos. Excelente Saphou.

saphou disse...

É pena eu não ser preta, ou seja branca e loira vinda de África.

Blimunda disse...

A determinada altura achei que ainda não tinha acabado "A Casa dos Espíritos"!

Infelizes os que não podem rebuscar na memória o bucolismo da infância!

saphou disse...

JÁ COMEU? EMPANTURROU-SE EM CARNES VERMELHAS?

Blimunda disse...

Nem me diga nada! Ainda tenho o as calças desapertadas de tal que foi o empanturranço.

Blimunda disse...

E a ciática, acalmou? Quer um massagista à maneira? Tenho um lá em casa que não se importa de passar recibos verdes! Em contrapartida há umas injeccões porreiras que provocam mais dor que a própria dor ciática.

saphou disse...

Ah, a maior felicidade que alguém pode ter é casar ou viver em união de facto com um belo massagista bem musculado, simultaneamente cozinheiro, sempre pronto a servir.

saphou disse...

Vou chumbar mais um gajo e volto já.

Blimunda disse...

O pior é quando o massagista/cozinheiro se cobra sempre dos serviços prestados e não aceita papel!