Mudei para casa da Saphou ontem. Pelo caminho, recordei a primeira vez que vivi numa república, também foi assim, num inicio de Verão. Bati a porta vermelha, perante o riso estridente dos velhotes e do primo burro. Nem sequer um abraço me deram, um Good Bye. Riam, e ironizavam.
Sem mesada, sem apoio, com um saco da adidas cheio de comida, 2 livros maquiavélicos e cassetes pirata. Finquei o pé, olhei-os pela ultima vez naquele mês, e mudei para 3 quarteirões abaixo. No Porto as ruas são todas muito próximas.
A minha cama era debaixo da escada das águas furtadas. O soalho rangia com as nossas danças e às vezes fingíamos o suicídio da janela da mansarda. Declamava poemas para a malta que passava, já não sei se era poesia de metaleiro, de hippie, ou de grunge. Sei que os transeuntes levantavam os braços, em sinal de apoio. Lembro-me do Metálica ter saltado do telhado para o quintal por ser imortal, encontrámo-lo já de manhã, na soleira, para nosso enorme espanto, com vida. Ajudámo-lo a levantar-se e colamos-lhe os "raiban" com tesa transparente.
Regressei muitas vezes a casa dos velhotes numa tentativa de reconciliação, não me ligavam nenhuma, era como se não me vissem a encher os sacos de comida. Nem uma palavra de apoio, nem um “estás bem meu querido filho”, nada, não diziam nada.
A vida foi muito difícil para nós todos, ali desamparados, comíamos essencialmente pêssegos. Vendíamos desenhos na Batalha, o antigo centro de arte resmenga da nossa cidade. Não resultou, o povo estava ainda muito fechado às artes. A velhota ainda me enfiou dois cachaços em público por querer ser artista. Foi quase o fim da carreira, um revés inarrável.
Ainda hoje, não sei como merda descobriram onde eu morava, apareciam lá, cheios de autoridade, sem o mínimo carinho por mim, chamavam-me maluco e xingavam-me. 13 anos mais tarde descobri que eram comunistas e por isso não tinham capacidade para entender as grandes coisas que eu andava a fazer.
Desta vez tudo será diferente. E a casa da Saphou é na outra ponta na Foz, nunca me vão descobrir aqui. E terei finalmente a minha independência. O meu quarto é virado a norte e tem porta, a casa tem 2 WC e os 2 tem banho, é incrível. A Saphou é excelente e tem ar de quem, por muita fome que passasse, nunca roubaria o meu ultimo iogurte.
Gosto da Saphou, dos seus livros e dos seus CD´s. Pensamos montar uma escola. Conversamos até às 5 da manha, bebemos cerveja e levitamos. Construimos novos paradigmas. Estou aflito para mijar. Continuo mais tarde.