domingo, 1 de agosto de 2010

Eu via-os, todos os dias, da minha janela

entre as casas e o mar.
Vi-os envelhecer com uma cumplicidade própria dos apaixonados. Embora já fossem velhos quando os vi pela primeira vez, há cerca de 20 anos.
Viviam na pequena casa cor-de-rosa de bonecas em frente. Sempre muito bem tratada, pintada a rigor, janelas de madeira a brilhar, a  horta minúscula, o pequeno jardim, o cão, as duas filhas, já então adolescentes...
Ao que parece a casa era de caseiro e o marido, caseiro da casa cor-de-rosa mater, enorme, mesmo em frente à minha janela, tinha-a recebido como legado da Senhora Taylor. Uma história infeliz de uma tia muito rica que deixara o casarão belíssimo, rosa com janelas verdes, à sua única familiar, uma sobrinha que, entretanto, casou com um tipo que lhe deu cabo da fortuna. Eu vi a casa mater rosa desfazer-se em peças, ao longo dos anos, com muita pena minha, que me imaginava a viver nela...Primeiro, venderam dois lotes e uma família de posses comprou-os, construindo duas casas em frente à minha janela, típicas da escola de arquitectura do Porto, que me impediram de ver o mar bater nas rochas com toda a força do Inverno, ou deitar-se na praia nos dias de torpor do Verão.
Depois, veio uma empresa de investimentos que deu o golpe de misericórdia na velha casa de uma beleza rara. De rosa velho com janelas verdes passou a beije com sinais luminosos, foi-se a relva, a piscina, as árvores centenárias, tudo se foi.
Parece que o casamento da sobrinha da Senhora Taylor também se foi e todo o dinheiro obtido foi para pagar as dívidas do marido.
Mais valera à Senhora Taylor deixar a casa grande rosa de janelas verdes, com entrada por uma rua e por uma avenida, deixar tudo ao caseiro, que soube conservar o seu pequeno legado com o amor com que olhava a companheira.
Todos os dias iam passear juntos, depois de almoço e ao fim da tarde. Sempre de braço dado. Mesmo antes de ele precisar de se apoiar numa bengala, mesmo antes de ela, muito mais baixa do que ele, precisar de se apoiar nele.
Num dia de sol, olhei a casa pequena, com a admiração de sempre, e choquei-em com a tampa de um caixão encostada à parede do pequeno jardim, com uma cruz enorme, quase maior que o caixão, dourada, demasiado dourada. Um carro fúnebre aguardava na rua pacata. Não havia choros, nem gritos, apenas sol e  um silêncio domingueiro angustiado. Apenas a eficiência dos cangalheiros e um caixão que não entrava pelas portas nem janelas na casa que o rejeitava.
Passados poucos minutos, trouxeram um pequeno corpo envolto em lençóis que colocaram no caixão que também aguardava no jardim, com brincos de princesa em volta. Colocaram a tampa, levantaram o caixão pelo muro e passaram-no para o carro fúnebre. A casa também rejeitava que entrassem ou saíssem caixões pelas suas portas.
Apesar de ao longo de quase vinte anos dizermos bom dia e boa tarde uns aos outros, com um sorriso,  nada mais disséramos, nem o nome. Nem lhes disse como os admirava e como me fazia bem o amor e cumplicidade que eles transmitiam ao passear de braço dado.
Ela morreu. Nunca mais o vi. Bem o procuro da minha janela.