terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Argumento para novela de segunda sobre a mais banal solidão

Bem vistas as coisas, ela nunca foi feliz, embora não soubesse. Mas ninguém é, por isso trata-se de uma banalidade.
Em pequenina, vivia numa casa enorme, com manchas de humidade no tecto, com uma janela virada a norte no seu curiosamente pequeno quarto. Mais parecia um corredor. Era frequente as centopeias assustarem-na. Só a sua imaginação de criança lhe permitia ver desenhos nas manchas de humidade: uma nuvem, uma montanha com casinhas, a cara de uma velhota, um anjo...
Disfarçava a sua solidão de filha única a desenhar ou a brincar com os búzios e beijinhos que apanhava na praia. Enchia a mesa da avó Rita com tudo aquilo e imaginava cidades, pessoas, construia bairros, a livraria, o pomar, a mercearia, a escola,...e os búzios ganhavam vida e transformavam-se em gente. Outras vezes, fazia cidades com lápis e os trajectos ficavam assinalados a cores. Assim podia imaginar as ruas mais movimentadas, como as pessoas se cruzavam, onde moravam...
Claro que havia os Legos, com que construia a sua casa de sonho, e as bonecas de papel que desenhava e a quem fazia vestidos.
Os pais discutiam muito e aquele casarão, cheio de adultos que não se entendiam, era desconfortável. Mesmo nas épocas festivas, a mesa tão cheia de gente nunca lhe aquecia o coração. Lembra-se ainda daquele Natal em que chorou baba e ranho porque o Menino Jesus não gostava dela, apesar de ter sido bem comportada todo o ano. Numa carta lindíssima pediu uma pista de combóios e recebeu uma mini boneca horrorosa num berço de palha. Podiam ao menos explicar-lhe que eram os adultos que decidiam essas coisas. Teria o consolo de não ter o Divino zangado com ela.
Gostava da casa dos outros avós, na encosta do rio Tua, numa aldeia saida de um conto de encantar, com as vinhas de uvas moscatel saborosas e a avó Joaquina a contar-lhe histórias da família, da casa grande, enquanto a levava às hortas, à Igreja, ao rio...aquela varanda virada a sul era soberba. Mas os adultos só a levavam lá dois ou três dias no ano.
Quando saiu de casa da avó Rita, foi viver só com a sua mãe num andar minúsculo, onde se lembra de chorar muitas vezes encostada aos vidros da janela, misturando as suas lágrimas com as da chuva, com saudades do pai que raramente a vinha ver. Calada, chamava sempre por ele.
As muitas casas em que viveu depois da reconciliação dos pais eram melhores um pouco, mas nunca a casa com que sempre sonhara em pequena. Tinham em comum o desconforto.
A mais bonita era uma casa moderna, dos anos 60, com um jardim cheio de brincos de princesa, que pendurava nas orelhas, até que uma enorme lagarta verde acomodada no seu brinco acabou com a brincadeira.
Uma explosão de pirotecnia quebrou os vidros todos da casa, enquanto os corpos voavam e aterravam na plantação de bananeiras ao lado da casa. Foi uma sorte não ter ficado toda cortada. O encanto da casa foi-se.
Outra casa tinha ratos, até que uma enorme cobra pendurada na despensa lhes acabou com a festa.
De qualquer modo, eram casas com história, enormes outra vez. Tinham um sótão só para si, para pintar murais e mais murais. Tinham quartos gigantescos (sempre desconfortáveis). Lembra-se de uma casa em que só habitavam o primeiro andar, porque o Rés-do-Chão estava atafulhado de mobílias antigas. Nunca ousou explorar o esse Rés-do-Chão porque imaginava todo tipo de histórias de terror, especialmente nos dias de chuva e vento em que o telheiro de metal fazia um barulho dos infernos mesmo ao lado do seu quarto. Foi nessa casa que viu os pivots televisivos assustados anunciar o 25 de Abril, essa casa, curiosamente, é hoje o Museu Carmen Miranda.
Os amigos de infância foram com as casas. Nómada, embora tivesse muitos, desapareciam ao fim de um ou dois anos, quando tinha que se mudar de novo. Era sempre a mesma história. Começavam por a gozar, por ser filha única, menina do papá, mas depois até se afeiçoavam a ela, era uma amiga sincera e, na altura, muito divertida. Gostava de aprender os costumes locais e nunca lhe ocorria gozar com a pobreza de espírito ou material de ninguém. Brincava ao prego, ao berlinde, à macaca...as casas estavam sempre cheias com seus amigos temporários. Hoje não se recorda do nome de nenhum. Apenas algumas caras esfumadas ficaram retidas na memória.
Sempre pensou um dia ter sua casa e a sua família de sonho. As noites de adolescência acendiam-lhe os sonhos. O que era (é?), aliás, um lugar comum entre as adolescentes da sua geração. Um engano educacional?
Os sonhos inatingíveis foram desaparecendo um a um, incluindo a casa de sempre. É o custo de ser adulto e de estar no Outono ou Inverno da vida terrena.
Hoje vive num andar minúsculo atafulhado de medos, memórias e tralha do passado e do presente. Rodeada de gente, continua solitária. Uns dias mais, outros menos, ao sabor da melancolia.
Já não é, sequer, a menina do papá. Está morto.

Questions

Porque é que há alguém que se antecipa e come sempre o último chocolate quando já estavamos a salivar por ele?