sábado, 17 de outubro de 2009

Marisa Monte: Solidão

Conto à Sexta-feira: "Partir"

... és tu? Vieste matar-me?
Toda a vida tentei evitar-te, mas chegas em boa hora.
Não imaginei que fosse assim.
Pegavas-me na mão, corrias comigo em volta da casa, voltas e voltas, e rias, eu pendurado no teu braço, tinha de novo 3 anos, e o teu sorriso era uma festa.
Mesmo quando me puxavas em direcção ao rio, tanto frio, tanta gente, e tu a arrastares-me para o banho gelado. Nessas noites não queria partir.
E chegas agora assim, num momento tão simples.
Hoje não me despi para dormir, estou pronto para partir contigo, não sei se queres conversar um pouco, parece que não tens pressa, por mim podemos ir, não preciso de mais tempo.
Há muitos dias que revejo a vida e lembro-me apenas da infância. Tenho-me interrogado se a vida além da morte é isso.
Não compreendo porque subestimo tudo resto.
Não respondes? Gostava de saber porque chegados aos 80 lembramos dos 40 para trás, ninguém entende os velhos.
A vida foi tão bonita, tão desafiante, tenho pena de partir. Mas sinto que é chegada a hora. E a prova disso é a tua presença aqui no leito da minha cama, onde já durmo só há 20 anos.
A minha mente tem clarificado as vivências. Vejo-te comigo desde o início, lembro-me de estar nos teus braços antes de berrar nos da minha mãe, não compreendo como pode ser possível, mas agradeço teres permitido que chegasse aqui. Se viesses antes não teria visto.
No outro dia, enquanto tomava um chá, ali no sofá da sala, vi-te passar na janela, corrias, quase voavas, levaste as casas e deixaste um vale verde, parecia um quadro, uma paisagem aprofundada, pensei em dizer-te adeus mas, desculpa, as minhas pernas não são as mesmas e, apesar do momento ter sido longo, limitei-me a sorrir. Diverti-me imenso com a tua dança, pena que nunca mostrasses o rosto, não te julgava tão calma e bonita. Tens uma aparência maternal.
Já chega de considerações, não é? Vamos embora. Devo colocar um chapéu, que achas? Um chapéu bonito para poder dançar contigo e fazer vénias quando passar em frente das janelas dos meus amigos.
Tenho que me levantar, não é? Levantar-me e partir.
Sabes, vou ter saudades, saudades de tudo, a vida foi tão bonita...
Ok, acho que estou preparado, podes segurar-me a mão? Queria evitar as lágrimas.
Dá-me um momento para sentir, deixa-me rever só uma vez e, depois, embala-me no teu sopro, faz-me leve silhueta para que os amigos não se assustem a ver-me dançar e sorrir, dançar e sorrir, dançar, dançar, dançar e sorrir... elevado sobre o altar, mãos laçadas na nuca, perdido nas conversas de ocasião, descobrirei coisas novas em todos, tarde demais para reagir, e quando os 4 segurarem as asas do meu corpo, na viagem de devolução, cantarei, tinha escolhido várias músicas para tão digna comemoração, mas hoje não sei o que lhes cante, se me deixasses pensar um poema que lhes revelasse este segredo de como se morre bem? Eu sei, mas tu também sabes que sempre falei demais, tem um pouco de paciência.

Onde estás? Ei, já morri? Morrer é falar sózinho?
Oh e agora, posso levantar-me, mover-me? Será que me desintegro, só me é permitido falar? Mas no meu caso, ou em todos os casos? Não há mais mortos aqui? Para onde vou? Fico aqui? Ei, a sério, então, fico aqui? Espero que me encontrem? Confessa, é mais um desafio, não é? Não sei nada desta cena, estou cheio de medo, vou me deixar estar por aqui deitado, mexo só os olhos, há-de ocorre-me qualquer coisa....

Hum isto é muito estranho, que sensação. Estou contente, não sei como reagir, demais, isto sim é completamente novo, quem diria, aos 80 anos uma nova experiência. Ouve, e se estou confundido e vivo ainda e estou no meio de um delírio? Se calhar devia levantar-me e desligar a televisão. Não, é melhor ficar aqui, se tiver morrido, ao menos não me surpreendo. Não é?