Quando era pequena e estava doente, a mãe trazia-lhe carinho e uma comida reconfortante, o xarope até sabia a morango. O pai brincava com as roupas que ela fazia para as bonecas. Enfiava umas calças em dois dedos de uma mão e um saiote em outros dois dedos de outra mão e fazia um bailarico improvisado que a fazia rir, mesmo quando estava com um pico de febre. Outras vezes, fazia-lhe desenhos divertidos e contava piadas.
Hoje, quando ela está doente, tem que tratar de si e dos outros, mesmo quando lhe dói o corpo e a alma e a fatiga é tanta que sente que não aguenta. A familória diz-lhe que é mesmo assim. Que aguente, que não chateie os outros, não se queixe, fique caladinha. Desde que continue a trabalhar, cozinhar, tratar da roupa e tenha tudo em ordem, nem lhe chamam velha maluca, frase que já teve que engolir, embora nem seja velha, nem maluca (ao que eu cheguei, pensou nesse dia, as lágrimas rolaram muitos dias a seguir a esse e a ferida ficou aberta).
Quanto mais adulta e mais próxima da morte, o carinhos deveriam ser geometricamente aumentados, mais as prendas e as guloseimas. Os fantasmas deveriam vir dançar bailaricos divertidos e contar piadas, enquanto os que ainda cá estão e, aparentemente gostam da velhota, deveriam dar-lhe uma comida saborosa para que os comprimidos, às meias dúzias, voltassem a saber aos morangos silvestres da infância.
A criança é infantilizada até findar a adolescência e transforma-se num adulto merdoso. Como isto acontece há gerações, os adultos são, em regra, uma cambada de egoístas que só pensam no seu ego e continuam a infantilizar e estragar as crias. Repetem padrões.
Como é que a sociedade não há-de ser um selva, se nem ninguém da família faz uma comida mimada à mãe, que fez o possível e o impossível pela cambada que a rodeia? O normal é, muitas vezes, o companheiro, marido, ou o raio-que-o-parta, sair mais cedo e chegar mais tarde, para não ser incomodado. Os filhos estão-se nas tintas. Limitam-se a perguntar: estás melhor? A grande família é um mito, com essa já nem se conta.
No final, são os estranhos, a empregada, a enfermeira, a contratada para dama de companhia dos tempos modernos, a x euros à hora, que da trata mãe doente, quando ela já não pode tratar de si. Quando o incómodo for muito, enfiam-na num lar, por certo.
E ainda se admiram com a quantidade de deprimidas que por aí pululam. Esta merda é uma selva. Impera a lei do mais forte. Só esse, sem sentimentos e escrúpulos, que mente, manipula e aldraba, mas que tem uma saúde de ferro, é que se safa. E esse, em regra, é homem. A mulher, repetindo padrões de dever interiorizados com culpa à mistura, continua a tratar do marido, companheiro, ou do raio-que-o-parta, quando ele está doente, ainda que o deteste profundamente.