sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Insolvência

Valeria a pena rezar? Pedir a Deus? Não tinha coragem de pedir nada, de falar sequer, queria apenas ver, ver com a clareza que não tinha visto a vida ate chegar àquela estrada. Diriam todos na mesa: – Está atrasado o Doutor! É lógico que não vem, resolva-se já isto, mandem prender o indivíduo.
E ela? Tão harmoniosa, branca, que faria a seguir, sem ele, sem o mau humor dele. Sem a cinza espalhada no escritório, sem os copos pegajosos, sem ele absorto ao volante. Tantas vezes lhe encomendou uma viagem tranquila, uma velocidade moderada, que a vida não foge, fugimos nós à vida.

- A concorrência Doutor está aí saudável, não tem crise. E nós temos encomendas, ganhamos mal, o Doutor sabe muito.
Tinham-lhe dito, como cães de fila a cerca-lo. Não, já não sabia muito. De facto, ainda havia encomendas, não porque dessem dinheiro, mas sim porque não queria vê-los desempregados. As obras demoravam cada vez mais e a perfeição não era a mesma, reunia, com todo aquele verbete moderno de incentivo, a situação só piorava. Já não conseguia ser implacável como noutros tempos, falava como se fossem eles também doutores.

E tu? Qual foi a tua culpa?
Tantas culpas, tantas culpas. Talvez tivesse protegido uns despedindo outros, talvez devesse … - Os ouvidos estalaram, tentou mexer-se, o fato, o fato que ela lhe tinha disposto para a última reunião, estava com goma, as pernas pareciam não ter movimento, pôde ver que o pé estava junto à caixa de velocidades, voltado para trás em desalinho com o corpo.

Encaixou a mão esquerda entre o pescoço e o cinto, inclinou a cabeça, uma fonte de calor cobriu-lhe o peito, a gravata de seda. Naquela posição avistava campos verdes ao fundo, lameiros, como o avô lhe chamava, mas o céu já não o via, os olhos estavam cansados, as mãos não chegavam ao pé.

Junto ao ouvido alguém o chamava:
- Doutor Castro? Doutor Castro? Consegue ouvir-nos. Não se preocupe, vamos tira-lo daí, o senhor consegue ouvir-nos?

Bem sabia que o iam tirar dali, para sempre, da fábrica que foi dele, do meio dos seus empregados, da sua casa nova, dos seus filhos e dela. Via-os pelo canto do olho, como quem espia movimentos, um a um, batida por batida, sem dor, sem céu, sem amor, sem perceber como sabiam eles quem era o Doutor Castro.
- O Doutor Castro, não estará presente na reunião.

2 comentários:

Blimunda disse...

Tens a certeza que não leste recentemente o Manual do Inquisores? Tal e qual o Ministro. Só lhe falta o capéu na cabeça e a frase nos lábios: faço tudo o que elas querem só não tiro o chapéu para que se saiba quem é o patrão.

Privada disse...

Ah merde, pode ser, li há mt tempo, mas ontem por causa da Saphou fui buscar o livro espanhol sobre o Salazar, pode ter a ver com isso. Mas agora estou infeliz, porque agora que me lembras o Manual, oh pá, falta rebusque na historia, tá fraquinha e pobre. Já não envio hoje.