em plena caloraça de Agosto. A avaliar pelo forte azul do céu, sem uma única nuvem, e pela rua deserta, devem ser duas da tarde. A aldeia, com a sua dezena de habitantes, recolhe-se da soalheira. Nem se vê um velho crestado sentado num banco ou uma ti Maria sentada na soleira da porta a aproveitar a escassa sombra. A igreja, impecavelmente pintada de branco, com uma graciosa torre, onde o sino toca de hora a hora, está de portas fechadas. Também, mesmo à hora da missa pouca gente assiste. O Alentejo nunca foi dado a manifestações de religiosidade. As pessoas já se juntavam, talvez por falta de dinheiro para o casório, talvez por tradição, no tempo do outro fascismo que já lá vai.
A seguir ao Largo da Igreja, onde uma rua começa, deve ser casa de alguém mais abastado. Casa de dois andares com uma enorme varanda, que ocupa uma parte considerável da rua. De qualquer modo, os donos não dão sinais de vida. As portadas das janelas estão todas fechadas. Geminada, é a casa do ti João, que em baixo tem um pequeno celeiro. A mulher caia a casa de ano a ano, às vezes de seis em seis meses, e desta vez escolheu uma bela lista amarela ao longo de portas e janelas e a todo o correr da fachada. Casa bem com a lista azul com que as poucas frequentadoras da igreja decidiram rematar a sua base e os contornos das janelas, depois de a terem caiado a pedido do pároco das muitas freguesias vizinhas, que vai à aldeia celebrar a missa e absolver dos pecados aos Domingos pela fresca, de quinze em quinze dias.
Admiro sempre beleza genuína das aldeias e vilas alentejanas, mantidas limpas pelas mulheres que caiam as casas, e ainda não atacadas pela selvajaria urbanística que arrumou, em especial, o litoral, do Sado até ao Minho, e toda a costa algarvia, mas também muitas aldeias do interior no centro e norte do país. A harmonia tradicional da paisagem do Alentejo acalma a minha alma, uns dias mais atormentada do que outros.
Esta é a primeira imagem que me aparece quando acordo. Uma serigrafia de Molina, na parede em frente, ladeada pelas linhas de Cesariny e pelas minúsculas criaturas marinhas de João Fragoso.
Curiosamente, a igreja do quadro é único símbolo religioso que há cá por casa, apesar de ser uma mulher de fé.
Quando estiver mais folgada, vou comprar uma escultura religiosa antiga, talvez em leilão, de alguma santa ou santo da minha devoção, ou até de uma Nossa Senhora ou de Jesus. É um desejo antigo. Até pode acontecer que tenha sido furtada de alguma capela perdida e que eu venha, sem saber, a participar num crime de receptação, por certo prescrito. Estou-me nas tintas. Preciso de satisfazer a minha necessidade estética e o inconsciente ancestral primário que desperta olhando o símbolo como se o próprio Deus o interpelasse.
1 comentário:
Será, certamente, devido ao facto de o inconsciente a satisfazer ser ancestral que também a escultura religiosa deverá ser antiga. Uma coisa não casaria com a outra se assim não fosse! Também adoro o Alentejo e a maioria das suas gentes. É que mais próximo há em Portugal da genuina simplicidade.
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