... és tu? Vieste matar-me?
Toda a vida tentei evitar-te, mas chegas em boa hora.
Não imaginei que fosse assim.
Pegavas-me na mão, corrias comigo em volta da casa, voltas e voltas, e rias, eu pendurado no teu braço, tinha de novo 3 anos, e o teu sorriso era uma festa.
Mesmo quando me puxavas em direcção ao rio, tanto frio, tanta gente, e tu a arrastares-me para o banho gelado. Nessas noites não queria partir.
E chegas agora assim, num momento tão simples.
Hoje não me despi para dormir, estou pronto para partir contigo, não sei se queres conversar um pouco, parece que não tens pressa, por mim podemos ir, não preciso de mais tempo.
Há muitos dias que revejo a vida e lembro-me apenas da infância. Tenho-me interrogado se a vida além da morte é isso.
Não compreendo porque subestimo tudo resto.
Não respondes? Gostava de saber porque chegados aos 80 lembramos dos 40 para trás, ninguém entende os velhos.
A vida foi tão bonita, tão desafiante, tenho pena de partir. Mas sinto que é chegada a hora. E a prova disso é a tua presença aqui no leito da minha cama, onde já durmo só há 20 anos.
A minha mente tem clarificado as vivências. Vejo-te comigo desde o início, lembro-me de estar nos teus braços antes de berrar nos da minha mãe, não compreendo como pode ser possível, mas agradeço teres permitido que chegasse aqui. Se viesses antes não teria visto.
No outro dia, enquanto tomava um chá, ali no sofá da sala, vi-te passar na janela, corrias, quase voavas, levaste as casas e deixaste um vale verde, parecia um quadro, uma paisagem aprofundada, pensei em dizer-te adeus mas, desculpa, as minhas pernas não são as mesmas e, apesar do momento ter sido longo, limitei-me a sorrir. Diverti-me imenso com a tua dança, pena que nunca mostrasses o rosto, não te julgava tão calma e bonita. Tens uma aparência maternal.
Já chega de considerações, não é? Vamos embora. Devo colocar um chapéu, que achas? Um chapéu bonito para poder dançar contigo e fazer vénias quando passar em frente das janelas dos meus amigos.
Tenho que me levantar, não é? Levantar-me e partir.
Sabes, vou ter saudades, saudades de tudo, a vida foi tão bonita...
Ok, acho que estou preparado, podes segurar-me a mão? Queria evitar as lágrimas.
Dá-me um momento para sentir, deixa-me rever só uma vez e, depois, embala-me no teu sopro, faz-me leve silhueta para que os amigos não se assustem a ver-me dançar e sorrir, dançar e sorrir, dançar, dançar, dançar e sorrir... elevado sobre o altar, mãos laçadas na nuca, perdido nas conversas de ocasião, descobrirei coisas novas em todos, tarde demais para reagir, e quando os 4 segurarem as asas do meu corpo, na viagem de devolução, cantarei, tinha escolhido várias músicas para tão digna comemoração, mas hoje não sei o que lhes cante, se me deixasses pensar um poema que lhes revelasse este segredo de como se morre bem? Eu sei, mas tu também sabes que sempre falei demais, tem um pouco de paciência.
Onde estás? Ei, já morri? Morrer é falar sózinho?
Oh e agora, posso levantar-me, mover-me? Será que me desintegro, só me é permitido falar? Mas no meu caso, ou em todos os casos? Não há mais mortos aqui? Para onde vou? Fico aqui? Ei, a sério, então, fico aqui? Espero que me encontrem? Confessa, é mais um desafio, não é? Não sei nada desta cena, estou cheio de medo, vou me deixar estar por aqui deitado, mexo só os olhos, há-de ocorre-me qualquer coisa....
Hum isto é muito estranho, que sensação. Estou contente, não sei como reagir, demais, isto sim é completamente novo, quem diria, aos 80 anos uma nova experiência. Ouve, e se estou confundido e vivo ainda e estou no meio de um delírio? Se calhar devia levantar-me e desligar a televisão. Não, é melhor ficar aqui, se tiver morrido, ao menos não me surpreendo. Não é?
15 comentários:
Fabuloso. Dedica-te à escrita, tens uma imaginação prodigiosa. Eu ofereço-me para editar.
Era aquilo a que podiamos chamar o fracasso das equipas bem sucedidas. Iamos para a Foz debater as ediçoes, os temas, tardes, dias, e alterar as historias todos os fins de semana, bebiamos umas margueritas.
hei-de reconstruir um mausoleu para essas tardes, nao na Foz, ohhhhhh, num sitio onde possamos tbm fazer umas pinturas.
:-))))
Bom sabado Saphou!
★★★★★★
Só não entendo porque é um conto à sexta, se sai ao sábado.
Pode serna Foz do Arelho, na Praia d'el Rey, ali por Óbidos. Bom sábado para ti também e, já agora, extensivo à Mofina.
É um conto tantrico, amiguinho.
Ola Mofina. Tenham um excelente fim de semana, todos .
Isso era sonhar muito alto Saphou, podemos passar as tardes solheiras de sabado, a falar sobre editar coisas, mas segunda feira temos que trabalhar e eu trabalho no Porto, como chego ca?! Tem que ser mais perto.
A Saphou (ou como raio ela se chama!!!), não desilude. Ilude. É, de facto, brilhante. O seu exemplo tem servido para eu reforçar a minha convicção de que as pessoas boas não têm consciência do seu valor.
Privada, isto é belo.
Mas o meu vizinho de cima, ser execrável, começa a colocar mas:
- Como é que um homem, estando tão pronto, demora tanto tempo a estar pronto?! Parece uma gaja.
- Um homem nunca considera se o chapéu que leva para cumprimentar os amigos é bonito - é um chapéu, serve para os cumprimentar, end-of-story - as gajas é que começam com essas cenas de bonitezas;
- O fim da história é de homem. Acho que o teu amigo adaptou uma história contada por uma gaja. Diz-lhe que é um traidor à raça.
Não digo nada disso, digo-lhe que houve uma frase que achei fantástica:
(...) onde já durmo só há 20 anos(...)
Mas não sabemos se o privada é gaja ou não. É um mistério.
Caro Eu bem te avisei mac, o privada é muito misterioso. Segundo o meu vizinho do cimo das escadas, até é "um traidor à raça".
O raio do vizinho só não me disse a que raça.
Eu cá sempre disse que não se pode confiar. Nos vizinhos do cimo das nossas escadas, claro, porque o privada é de confiança.
Minha querida Mac, estamos a falar de um homem de 80 anos, o chapeu é um elemento, para uma mulher seria um acessorio, um mero registo, falamos de um homem feliz bem resolvido, que passa os ultimos 20 anos a recordar, a divagar, a passear pelas ruas.
Pode confiar em mim, os homens são bons na maioria e grandes companheiros de viagem, as mulheres é que por norma não se conformam de não poder ama-los para toda a vida, como sonharam, dizem que a culpa é deles, mas a verdade é que o amor que sentem por eles acaba, alguns percebem e reagem, outros deixam-se estar, a mulher nunca admite que deixou de amar simplesmente. Mas na maioria das vezes é o que acontece.
Ei Good Monday!
Está tudo dito. para quê mais poluição! Boa malha, amigo!
A Mac esquece-se que nem todos os homens são de homem nem todas as mulheres são de mulher.
privada, caramba, com essas arruma o meu vizinho - da próxima vez que ele mostrar a penca, atiro-lhe com isso e fico a rir quando ele fugir com cara de parvo... Obrigada pela oportunidade!
Eu nem preciso de acreditar em si, sei perfeitamente que tem razão embora não concorde com essa teoria das mulheres acharem que a culpa é deles. Acho que pensam que a culpa é delas mas como a melhor defesa é o ataque, vá de os culpar que os parvos começam a embrulhar-se na defesa impossível de um crime não cometido e esquecem-se de verificar que afinal nem houve falha... Desculpe lá a franqueza, privada, mas os homens são um bocado parvos quando lidam com mulheres. É do ADN, parece.
Eu não me esqueci de nada, Blimunda, o meu vizinho é que é um gajo maldoso. Gosta de gozar com a minha atenção ao pormenor quando fala quem me interessa...
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