domingo, 26 de julho de 2009

Duas noites, dois contos, por Saphou

Conto 1
O filho tinha-lhe dito em tom ameaçador para não frequentar o ginásio à mesma hora que ele. Podia ir lá, mas noutras alturas.
O pai, acamado, pediu-lhe para lhe ir comprar o jornal e ela foi, mas não resistiu a entrar primeiro no ginásio.Escolheu o tapete mais ao canto que, ao contrário dos outros, era velho e meio enferrujado, andava devagar. Viu-o a ele e ao amigo, nuns tapetes high tech, a grande velocidade, lá ao fundo, para além das peças de vestuário que, penduradas num varão rolante, se ofereciam para venda com 70% de desconto.
Apareceu uma amiga dele e tudo se complicou. A amiga quis ver os fatos de treino em saldo e os três dirigiram-se para muito próximo do local onde ela estava. Fugiu pela escada de serviço, no meio de um odor a mijo indescritível. Mas, merda, tinha-se esquecido das calças. Não podia ir em calções para a rua, não era próprio para a sua idade e as calças tinham um valor sentimental muito forte, afinal, passara anos a fazer yôga com elas.
Arriscou voltar para trás, de novo o cheiro a mijo. Entreabriu a porta e esperou o momento em que eles, em grandes risadas, estavam distraídos. Zás, puxou as calças e deu consigo a fugir pela canalização do ar condicionado, só para evitar o odor a mijo amoniacal.
Compôs-se e entrou na papelaria, mas com tanta demora os jornais tinham esgotado. Só havia três revistas: National Geografic, The Economist e a Times, nada do que o pai tinha pedido. Acordou aflita em suor. Olhou em volta. Não faz mal, o teu pai está morto, lembras-te? Está morto. Não há nada a fazer. Não se vai importar por não ler a Bola.
Conto 2
Ao fim de anos de ressentimentos, reconciliou-se com o Runinhas. Até o abraçou e lhe deu um beijo. Ofereceu-se para se sentar a seu lado na cerimónia fúnebre da mulher morta há poucas horas. Ele insistiu que ela fosse directamente para a Covihã. Dado a desejos estranhos, não a quis num caixão, mas num saco de plástico bordeaux opaco, que acabara de chegar. Não contente, abriu o zip e quis ver-lhe a cara e abrir-lhe a boca de onde escorria um estranho líquido. Insistiu em analisar-lhe os dentes, e o líquido escorria. Era nojento, quase insuportável de assistir. Felizmente, no abraço da paz, não houve lugar a beijos, nem a abraços, nem mesmo cumprimentos de mão. Tudo muito distante. Mas não conseguiu evitar o nojo de saber que tinha dado um beijo ao Runinhas pouco antes e que o abraçara. Provavelmente, ele há poucas horas teria abraçado e beijado a mulher moribunda ou morta, sem sequer lavar as mãos ou a cara. Não era dado a limpezas inúteis.
Acordou apavorada. Porquê este pesadelo ao fim de tantos anos de afastamento? Distraidamente, olhou o telemóvel. Várias chamadas não atendidas e uma mensagem da amável colega profissional de enterros, missas de sétimo dia, nascimentos e quejandos (consta que até guarda uns sapatos no local de trabalho adequados a cada ocasião): o pai do Dr. Ronaldo Silva faleceu esta madrugada, segue directamente para a Covilhã, o funeral é às 5 horas da tarde.

7 comentários:

privada disse...

Sinais minha querida sinais, kando vamos aprender a entede-los, ah a vida e os sonhos, e os sonhos e a vida, valem a pena, pena k sao ambos curtos, flah´´s. Boa noite Saphou

Katchumpa disse...

Drama queen...

Ai sacaninha disse...

Katchumpa, só pode ser de Cabo verde. Cabo Verde, porque não apareces no blog de Saphou & Co?

privada disse...

Katchumpa, quando tem a Covilha e um saco da cor da moda?
Aprecie o ke tem, nao deseje o impossivel, deseje o ke ja tem, o mais facil.

Tor, Editor disse...

Inspirada em Poe, Saphou escreve dois contos notáveis e ninguém se atravrssa. Tirando esta gaja e o magnífico Privada.
Quero editá-los.

Blimunda disse...

Amiga, quem sonha de dia tem consciência de muitas coisas que escapam a quem sonha só de noite!

Anónimo disse...

Fantástico. Mesmo bom.