Ela acordou e tomou o pequeno almoço. Pediu-lhe para ele ficar com ela.
Ele disse que não podia, que tinha muito que fazer.
Ela levou o seu filho de um ano e pouco a casa dos pais e pediu expressamente para não aparecerem lá.
Entreteve as horas a ler, a regar o jardim do prédio, tentava não pensar. Mas estava triste, muito triste.
O dia foi muito longo. Ele chegou por volta das seis e meia da tarde, quando o médico tinha dito que a cirurgia começava a essa hora. Ela conteve a humilhação. Nem para o nascimento do segundo filho chegava a horas. Engoliu a tristeza e as lágrimas.
Os pais também não a respeitaram. Instintivamente, ao subir a escada da Ordem da Lapa, olhou para trás. Ao fundo, por baixo das árvores centenárias, dentro de um carro vermelho, o menino que ela adorava dizia-lhe adeus com as pequeninas mãos. E ela não podia voltar para trás, para o abraçar e fugir dali.
Teve que tratar da burocracia, da escolha do quarto, do pagamento, tudo sózinha, enquanto ele estacionava o carro.
Veio aquela enfermeira que detestava para a preparar para a cirurgia. Começou a trovejar. De novo, o percurso já conhecido para a sala de operações. Agora a trovoada parecia ameaçar o universo.
No bloco, alguém lhe disse:
-"Está tão triste, não esteja assim senão também acorda triste".
-"Em que pensa? disse o médico anestesista:
-"No meu filho de um ano pouco que está lá fora e que eu adoro, quero voltar a vê-lo".
Vinha num tunel escuro a uma velocidade extrema acompanhada por uma voz masculina que lhe dizia -"Agora vais voltar". Sentiu essa velocidade extrema durante muitos meses, sempre que fechava os olhos. Desta vez a afastá-la de si.
Sentiu o cheiro a café, enquanto uma enfermeira lhe dizia que ainda ia ficar com oxigénio mais um pouco.
Levaram-na para o quarto e tinha uma bebé lindissima à sua espera. Uma benção no meio de tanta tristeza.
Mas parte dela morreu para que esta vida surgisse. Ela ainda não sabia então. Nem percebeu um pouco mais tarde, no quarto dia pós-parto, quando a mandaram para casa com 40 de temperatura, nem quando esteve à beira da morte durante meses. Sabe-o hoje. Mas não se importa. Já se habituou. O importante é que a bebé lindissima, que ela adora tanto como o menino que lhe dizia adeus com as pequeninas mãos, seja uma mulher com muitos momentos de felicidade. Para ela a hora é outra.
6 comentários:
No meio da tristeza do texto, percebe-se o retrato de uma Mulher forte.
Ainda hoje há quem diga que a mágoa é condição da Mulher. Sempre achei que estavam errados
O melhor é olhar para a frente.
Caraças...
Há incompreensões que são directamente tributárias da cobardia.
Mas há muitas outras incompreensões, que penso que são a grande maioria, que residem numa diferente sensibilidade aos factos da vida.
À autora do texto, a quem presto os meus respeitos, formulo uma pergunta: já pensou que noutras ocasiões “ele” se sentiu sozinho e desacompanhado apesar de V. estar perto ?
Exacto: porque V. não se apercebeu da importância que aquele pequeno nada podia ter para ele.
Bom, mas concordo que em tese geral “eles” costumam ser bem mais incompreensivos que “elas” - e tento, na medida do possível, contrariar tão desagradável estatística.
100 anos tem razão. Há que relativizar.
Gostei muito da história e da forma como está contada.
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