sábado, 14 de fevereiro de 2009

Portugal no tempo do MEC "Da Causa das Coisas" & outros


Tempo fantástico esse. O MEC estava no seu auge. Portugal era um país a sério.
Havia couves galegas em qualquer beira de estrada. Era só apanhar para fazer um caldo verde saboroso. Vendiam-se batatas, cebolas, alhos e tomates a seguir à Póvoa do Varzim, a caminho da Estela. Era indispensável comprar melões e melancias na viagem para o Algarve, a seguir à ponte, em Vila Franca de Xira, onde a paisagem se espraiava com aquela igreja semidestruída no meio de um imenso baldio dourado, de uma beleza inesperada. A Estalagem "Gado Bravo" recebia os comensais. Respirava-se de alívio ao fim de não sei quantas horas ao chegar ao Algarve. Nas férias de dois meses na casa em Vilamoura, deitava-me sem preocupações, de barriga para o ar, ao lado da piscina iluminada, enquanto via um sem número de estrelas cadentes e olhava os insectos desvairados com a luz. Vilamoura ainda consistia num pequeno conjunto de urbanizações aprazível e a praia dos tomates quase não tinha ninguém. Entre a Quarteira e a pitoresca Albufeira havia imensos pinhais.
Foi no Clube de Tiro de Vilamoura que o meu pai me ensinou a atirar aos pratos. Nunca mais perdi a paixão pelo tiro. Por essa altura também comecei a jogar golfe, adorava as caminhadas, o cheiro da relva recém molhada e o prazer de acertar em cheio na bola.
Não se podia fazer uma viagem de mais de 100 quilómetros sem aparecerem, pelo menos, meia dúzia de camiões carregados de fardos de palha.
A criminalidade mais grave, inevitavelmente, resultava do tipo que se passava quando via a mulher na cama com outro, ou se zangava com o vizinho por causa de uma questão de terras. Pegava na caçadeira ou no machado e matava os culpados, a seguir arrependia-se e entregava-se à polícia. Era tudo muito simples, tudo linear. Estava apaixonada, já não sei bem por quem, acho que pela vida, e divertia-me nos fins-de-semana. Estava tudo alinhado no meu universo. Era nova, livre, tinha a vida pela frente. Viajava sózinha pela Europa e pelo mundo, sem medos, pânicos, ou fobias. No último dia de uma dessas viagens, que durou mais de dois meses, tive que dormir no aeroporto de Frankfurt porque já só tinha 20 marcos e o avião partia na manhã seguinte.
Não havia telemóveis e os telefones nem sempre funcionavam de um país para o outro.
Cantaram-me os parabéns, em diversas línguas ao mesmo tempo, uma multidão de amigos, quando fiz 25 anos, em Schwäbisch Hall, desde chilenos até noruegueses. O pub era acolhedor e eu, gozada no início por não beber nada, já emborcava três copos de cerveja e ficava na mesma, ou deliciava-me com o vinho ao copo, uma raridade então entre nós. Na madrugada dos meus 25 anos, sentei-me na escadaria da Catedral a ouvir Bach. Estavam a ensaiar para um concerto no dia seguinte. Foi um tempo mágico.
Agora os crimes são complexos, a criminalidade violenta é organizada. Os fins-de-semana são um turbilhão de conflitos mais ou menos encapuçados. Já não viajo há uma data de tempo. Estou amarrada, presa no medo e na desilusão. Já não há camiões com fardos de palha. As estradas perderam a graça. As auto-estradas e vias rápidas rasgaram o país e são chatas até dizer chega. Passa-se pelos locais com pressa e não se aprecia nada. Já não há casa de Vilamoura. Foi vendida, a terra tornou-se uma metrópole insuportável junto com a miserenta Quarteira.
O meu pai morreu. Já não está cá para me ensinar mais nada. Deixei o tiro, deixei o golfe. Deixei tudo o que me dava prazer. Da vida espero pouco. Agradeço muito se tiver saúde e garra para acompanhar mais um tempo os meus filhos, pelo menos até serem adultos. Todos somos procastinadores. Está na natureza humana o instinto de sobrevivência.
Para cúmulo, é uma chatice fazer caldo verde. Vai-se ao hiper- supermercado, supervisionado pela ASAE, e vêm a porcaria das couves já cortadas às tirinhas. O velho caldo verde aburguesou-se, tornou-se europeu, já não sabe a nada, tal como a fruta normalizada.
Dass para esta porcaria toda. Mais valia que o lixo atirado para o espaço caisse e acertasse em cheio nos alvos certos, sem se incendiar na entrada da atmosfera.
O dia de hoje, para mim, deixou de ser há muito dia dos namorados. É apenas o dia de aniversário do meu pai que morreu. Parabéns, onde quer que estejas. Adoro-te. Cada dia, mês e ano que passa sinto mais a tua falta. Egoísmo? Talvez. Eu chamar-lhe-ia saudade. O fado e a saudade perseguem-nos, sabes como é esta treta de ser português.

7 comentários:

rps disse...

Reconheço-me em várias partes deste post. Talvez não haja quem, mais, ou menos, não se reconheça.

And the show must go on!

patricia m. disse...

Entao voce nao eh do mesmo tempo do Arlindo, ne Saphou? Ou se for estava em outra esfera...

Brincadeiras a parte, somos todos uns saudosistas incorrigiveis. Tudo na nossa epoca era tao melhor que agora, mas na verdade na verdade mesmo, isso eh so da boca pra fora. Daqui a 20 anos diremos que as coisas ha 10 anos atras eram melhores. O nosso cerebro altamente seletivo eh a melhor invencao da natureza. Esquecemos todas as coisas ruins, lembramos so das boas, por isso o passado eh tao legal. Tao melhor que o presente.

Anónimo disse...

Sou mais novo nao sei prai 12 anos e o texto tbm serve pra mim, embora os meus fins de semana so tenha terminado há 5 anos e o meu pai só tenha morrido há 2, mas é tudo por causa da crise, e na crise há lugar para esta literatura, para o ano volta tudo ao normal, nem que tenha que ser eu a vender tronchudas na beira da estrada

mac disse...

Eu cá acho que temos saudade da nossa juventude, quando ainda julgávamos que o mundo estava à nossa espera para ser mudado...

Amil Neila disse...

Wow, belo texto, belas recordações.

jg disse...

A sorte que eu tenho por não gostar de caldo verde!!....

AM disse...

"Talvez não haja quem, mais, ou menos, não se reconheça."

mais de 90 % da pop. portuguesa jamais se reconhece neste bonito e verídico testemunho, porque a pobreza era muitíssimo maior do que aquilo que as classes altas (como a que pertence a autora) pretendiam ver e que a censura deixava mostrar.
Fome, muita fome, gente miserável e descalça, pobres eternamente pobres, filhos e pais de pobres, era este o retrato de Portugal.
Estudem, investiguem e saibam que o verdadeiro Portugal era muito diferente daquele de que têm saudades. Esse Portugal narcísico de que fala a autora só existiu para ela mesma e porque nunca olhou em volta, para confirmar a suprema miséria dos seus compatriotas.
O mais triste é que - como sempre - a abundância dos ricos devia-se à pobreza de 90% da populaçao, com baixissimos salarios e condiçoes de vida degradantes.
Eu vivi bem, nessa altura (talvez melhor do que agora), mas tinha vergonha de ter saudades de um tempo onde a maioria dos portugueses passava tanta dificuldade e era tão explorado.