Quando a conheci tinha ela mais de setenta anos. Aceitou contar a sua história para as minhas crónicas de jornalista recém licenciada. Na primeira pessoa do singular.
Nasci na Normandia, e ainda tenho seis irmãs, mas não se importam comigo, eu também nunca me queixo. Estão espalhadas por França e outros países, telefonam-me, às vezes, no Natal. Pode ser karma, sei lá, quando estava no topo do mundo não me preocupava muito com elas.
Cedo vim estudar para Paris e vivo neste apartamento precioso no centro, desde há 42 anos. É o meu refúgio, a minha casa, a única coisa que me resta, mais a minha dignidade e a minha vizinha que é muito minha amiga, arranja-me o cabelo todas as semanas.
Licenciei-me em Física e em Biologia, doutorei-me e Física e sempre trabalhei na Universidade e em várias empresas. Fui rica, pode-se dizer, inclusive cheguei a comprar uma casa em Ibiza. Adorável vivenda junto à praia com uma areia fina e um mar azul turquesa. Passava os meses de verão lá.
Fiz muitos amigos então, cheguei mesmo a ter um curto casamento. Mas a minha vida era o trabalho apaixonante que desenvolvia. Nunca tive filhos.
Um dia, do nada, tinha eu quase 50 anos, apareceu o pânico. Lembro-me como se fosse hoje. Estava no laboratório e tive que fugir, senão achei que morria. Os ataques sucederam-se, deram origem a ansiedade generalizada e a uma depressão endógena. Afastei-me de todos, tinha vergonha daquilo. Comecei a faltar. Ficava paralisada com o medo.
Poucos anos depois, fui dada como inválida para o trabalho e passei a receber uma pequena pensão.
Fui gastando as minhas economias, vendi a casa de Ibiza, o Mercedes de última geração, fui comendo as poupanças até me restar apenas a magra pensão da segurança social.
Continuo a vestir-me todos os dias com as roupas de alta costura que procurei conservar. A minha aparência é impecável, faço questão disso.
Mas os únicos afectos que me restam estão nesta casa de 40 metros quadrados, com esta soberba varanda numa das ruas mais chiques do centro de Paris. Cultivo ervas aromáticas na varanda, para dar sabor ao que encontro para comer.
A pensão de invalidez até agora dava para pagar a renda e sobravam-me 10 euros para o resto do mês. Mas agora nem isso, em breve vou ser despejada para uma habitação social, ou para um lar.
Todos os dias me visto impecavelmente e pego no carrinho de compras. Nas caixas do lixo das grandes superfícies encontro restos de batatas, cenouras, legumes amarelados, com isso faço sopas e alimento-me. Nos dias mais felizes encontro um pacote com chá. Carne deixei de trazer, ia morrendo intoxicada pro causa de um pedaço de carne que trouxe há uns meses.
Já tive que curar uma pneumonia, não sei bem como. Nas ruas de Paris faz muito frio de Inverno e eu tenho que ir aos caixotes do lixo diariamente para me alimentar. Tenho que chegar antes dos homens do lixo, para não passar fome. Muitos já me conhecem e são amáveis comigo, ajudam-me a chegar mais ao fundo para procurar qualquer coisa a que não chego com a minha baixa estatura.
Só a minha vizinha sabe. Ela também vive sozinha. Às vezes faz-me um bolo, para além de me arranjar o cabelo.
O resto do dia passo-o a ler os livros que conservo, releio muitos. Ou então vou para a varanda, tratar das minhas ervas aromáticas. Converso muito com elas.
Tento não pensar no amanhã, quando vier a ordem de despejo, já devo rendas há mais de seis meses.
Esta casa e eu somos uma só. Dói menos se não pensar no que aí vem. Dói menos se assim o desejarmos.
11 comentários:
Ora batatas, Saphou, e tu nem lhe explicaste que o Lar é porreiro, tem comida, chá e não tem de limpar o pó e até pode ser que, se se esforçar um bocadito, consiga afectos mais interessantes que coisas inanimadas?
E assim vive feliz. Caso contrário, teria pedido ajuda aos amigos e aos colegas do tempo de universidade. Mas não quer. Quer viver essa vida. E não vive nada mal. Tem grandes ruas para passear e montras bonitas para ver, e não tem horários nem prazos a cumprir. A comida não abunda, o que até é uma vantagem. Lá diz o Povo: "das boas ceias estão as sepulturas cheias". Uma boa vida, sim senhora.
Olá, Saphou
Não sei se ataque a soberba dos dias dourados, o egoísmo da vida profissional apaixonante, se a primazia da aparência a que a senhora se rendeu. A única ausência de humanidade que aqui vejo é a da própria. É ao dar que se recebe. A amizade e fraternidade são uma via de dois sentidos. Às vezes os que estão do outro lado, resistem, outras não.
ah a espada de Damocles, sempre a pairar.
Creio que vi essa entrevista, acho que a vimos ha uns dois anos, levantamos na altura a hipotese de ir viver para o metro de Paris, como quem brinca... o facto é que é cada vez menos uma brincadeira, que vamos fazer a seguir
Viver, privada, seja lá a vida que for...
Olá, Saphou.
Modesta e parte Mac, fizeste-me lembrar de mim :-))))))))))) Sou eu ke costumo dizer isso
Dass, ninguém tem pena da senhora? Eu devo ser extraterrestre, vi isto num documentário há mais de um ano e nunca me saiu da cabeça. Se calhar sou como ela. Embora ache que não tenha aquela força de carácter.
Só achei estranho aquilo das irmãs e da vizinha. Mas, provavelmente, nem à vizinha contou que vivia a sopa feita com legumes semi-apodrecidos.
A história acaba com a segurança social a arranjar-lhe um pequeno apartamento num bairro social numa zona central de Paris e ela fica toda contente por poder levar para lá as suas recordações, que cabem nos 30 metros quadrados, e porque o apartamento tem uma pequena varanda
onde pode continuar a cultivar as suas ervas aromáticas.
Dassssss tu nao les os meus comentarios, tbm vi o documentario e na altura, se te lembras, imaginamos ir viver para o Metro de Paris, mas tu como sempre baldaste o prometido, e agora vou cantar Rui Veloso
Contigo vivia no metro de Paris, até no fim do mundo, era animação garantida e construías qualquer coisita nóses.
Apetece-me pokar a Blimumda
Enviar um comentário